Content
  • PT
  • ENG
© Flickr/ NIAID
Artigo
Publicado em 22/10/2014 por Isabel Pereira

A equipa de Fernando Garcês Ferreira no The Scripps Research Institute, nos EUA, está empenhada em chegar a uma vacina para o Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH). Esta semana o grupo divulgou que a resposta pode ser uma solução "feita à medida" para as diferentes fases de resistência do organismo. Em entrevista ao Ciência 2.0, o português adianta que "esta conclusão deverá mudar o paradigma da investigação mundial em VIH".

Nos últimos 35 anos, a comunidade científica tem tentado desenhar uma vacina com base nos anticorpos que o nosso organismo produz para combater o VIH, tentando induzir o sistema imunitário saudável a produzir estes mesmos anticorpos. Mas, "o vírus tem imensos truques", explica Fernando Garcês. De todas as partículas virais que entram no organismo aquando da infeção, apenas 1% são responsáveis por ela. Tudo o resto serve para "distrair" o sistema imunitário. Assim se explica que as vacinas desenvolvidas até agora tenham criado uma resposta ineficaz. "Houve produção de anticorpos contra a vacina, mas nunca foram os anticorpos os que precisamos para evitar a infeção".

"Temos de ensinar o sistema imunitário a não prestar atenção às distrações e focar-se no que realmente é importante", refere o investigador. O estudo agora publicado na revista "Cell" chega a duas conclusões importantes neste sentido. Perceberam, a nível molecular e atómico, que uma "família de anticorpos desenvolve diferentes estratégias para neutralizar o vírus adaptando-se às suas mutações", esclarece.

A equipa descobriu também que "a área do vírus que permite a fixação dos anticorpos não é a mesma ao longo do seu processo de maturação". "Mostramos que a vacina terá de ser diferente a cada etapa da evolução dos anticorpos. A investigação em VIH terá de tomar isso em conta e mudar o seu paradigma", destaca Fernando Garcês. O grupo propõe, assim, a criação de uma vacina tailor made que só conteria, a cada fase, a parte do vírus necessária para que o anticorpo desejado se fixasse.

Investigação em VIH: a "luta de gato e rato"

O Vírus da Imunodeficiência Humana tem cerca de quatro mil estirpes, que se dividem em cinco classes (A, B, C, D, E). O anticorpo estudado pode atuar em 70% destas estirpes. O investigador português foi responsável por desenhar toda a investigação e conduzir as experiências e as colaborações dos diferentes especialistas envolvidos.

Na dianteira da investigação mundial nesta área, Fernando Garcês relembra que este é "o vírus mais sofisticado da natureza a atuar sobre o sistema imunitário". Com uma taxa de mutação cerca de 100 vezes superior ao vírus da gripe, por exemplo, o VIH trava com "o sistema imunitário uma luta de gato e rato, em que um tenta apanhar o outro e este tenta escapar-se".

Quando questionado sobre um horizonte temporal para a criação de uma vacina, o investigador refere que "têm sido dados passos curtos mas firmes". "Estou convencido de que vamos na direção certa, mas não sabemos a dimensão do caminho que nos falta percorrer". Sobre os avanços nesta área de investigação destaca o facto de o sistema imunitário conseguir evoluir à mesma velocidade que o vírus, e o facto de a sida se estar a tornar, cada vez mais, numa doença crónica. "Já não é uma sentença de morte como era há 20 anos", garante.

O tema tem sido trabalhado com base numa macrocolaboração de equipas de investigação de todo o mundo, que se reúnem duas vezes por ano na Califórnia, onde o português trabalha diariamente. "É um grupo muito complexo e multifacetado que procura uma solução – a vacina – através de diferentes ângulos". Os imunologistas puros baseiam o seu trabalho no funcionamento do sistema imunitário, o laboratório do Scripps determina a estrutura dos anticorpos em complexo com o vírus, o grupo de experimentação testa as vacinas desenvolvidas em animais (ratos, coelhos e macacos) e uma outra equipa recolhe amostras e acompanha pacientes com VIH em África.

"Voltar a Portugal implica desistir de fazer investigação ao mais alto nível"

"Estar no centro de tudo é desafio é enorme! Trabalhamos muitas horas por dia e lidamos de perto com uma competição feroz, mas a verdade é que somos também privilegiados por ter todos os recursos necessários para levar a investigação a 'bom porto", refere, avançando que o seu laboratório dispõe de um orçamento avultado: "No ano passado ganhámos uma bolsa de 35 milhões de dólares para o estudo sobre VIH".

Sobre um eventual regresso a Portugal, é bem claro: "Voltar a Portugal implica desistir de fazer investigação ao mais alto nível". "Falta à sociedade portuguesa perceber que a investigação é básica para o futuro de qualquer país", diz, salientando, no entanto, que existem cientistas portugueses de grande qualidade espalhados por todo o mundo. "Espero que as coisas possam melhorar nas próximas gerações, porque não acredito que na minha geração isso seja possível", conclui.

 

Na foto: Imagem digital de uma célula  infectada pelo VIH

Foto: Flickr/ NIAID

Partilha


Comenta

Fernando Garcês Ferreira trabalha há dois anos no The Scripps Research Institute, nos EUA